Evolução

A evolução é sensibilização, isto é, dilatação contínua das vias da percepção bem como do poder e da alegria de perceber. Cada um reage conforme suas particulares capacidades seletivas e de sintonização.

Quanto mais à vida é espiritualmente profunda mais nos dá o senso do ritmo e nos transforma o ser em concerto de harmonias. Onde o homem comum percebe poucas sensações e duas ou três idéias com que enfeita o simplíssimo esquema de sua vida, o sábio deve saber movimentar-se, orientar, cair e levantar, em meio da vertiginosa complexidade de sua imensa orquestração e perspectiva.

A música dá-nos alegria porque nos patenteia a ordem que constituí a essência mesma da divindade e condiciona a felicidade suprema. Tudo quanto é harmônico nos eleva, melhora, dá-nos a paz que consiste no equilíbrio. Esses conceitos podem lançar nova luz sobre os problemas da evolução da música. Podemos, assim, tecer agora considerações mais profundas a respeito de alguns de seus aspectos. Nossa atual fase artística consiste no aniquilamento, no abandono total da forma.

Estamos na última fase de queda. O progresso artístico não passa, em substância, de processo de harmonização. Como todas as coisas, a música moderna “não evolui” em profundidade. O futuro consiste em continuar tornando cada vez mais ampla a estrutura sinfônica.

Aprofundemo-nos um pouco mais. Se observarmos a música de nossos dias, principalmente se a relacionarmos com a que a precedeu, verifica separação, diversidade e desacordo fundamentais. A música de ontem nos aparece como música resolutiva, estágio final de pacificação; a de hoje, no entanto, surge como música revolucionária, estágio inicial de luta. Hoje, na música predomina a dissonância, o desequilíbrio dos ritmos e dos tons.

No campo artístico, isso tudo exprime o atual ciclo biológico, como manifestação viva de destrucionismo, de decadência moral, de queda evolutiva no materialismo, de que nos afastamos dos superiores ritmos divinos, de espiritual estridor humano. É revolução, ruína, destruição que, contudo, também pode transformar-se em reconstrução, com elementos novos e, por isso, de bases mais largas e objetivas e dirigidas para fins mais elevados. É sem dúvida, luta e esforço, desordem mas representa, no caos, abundância de novas relações, de que surgem novas possibilidades. Esta a característica de nossa época, ao mesmo tempo, perigosa e notável em alguns aspectos.

Até a poucos anos a música constituía processo harmô­nico, em que o choque sonoro tendia a composição amigável, a solução pacífica. A música moderna tende pelo contrário a estado em que predominam a inimizade e a luta. Modernamente, a fadiga de colocarmo-nos acima do acordo fundamental, pacífico, calmo, não é mais descontínua, entremeada de contínuas pausas para descanso; é, isso sim, desesperado impulso que não consegue mais se resolver e aclamar-se num acordo. A dissonância se transforma de exceção em regra.

Os choques continuam, acumulam-se, perseguem-se numa luta sem tréguas. Daí nasce um estado de tensão permanente, de irredutível hostilidade que, se de um lado desenvolve ao máximo os dinamismos das correntes sonoras, se reduzem a simples paroxismo de instabilidade tonal que dá o sentido revolucionário da desordem caótica.

Isso está agravado pela instabilidade rítmica (mudança de ritmo), hoje muito em moda. Existe, sem dúvida, abundância de elementos novos, mas ainda no informe eruptivo, no estado caótico de desequilíbrio, isto é, na posição mais afastada daquela harmonização que constitui elemento evolutivo e representa o grau de evolução artística.

Verificamos inegável intromissão de fatores novos na moderna arte musical, em que surgem novos recursos, e se manifesta ampliação de bases construtivas; e isso constitui benefício, germe de progresso. Mas aí verificamos também existência de estado de desequilíbrio que, se pode ser dinamizante e, por isso, genético, é desordem também e a desordem significa involução, ao passo que a ordem quer dizer evolução. Eis a grande questão: saberemos dominar essa desordem, transformando-a em ordem? Ou, então, a corrente modernista nos prenderá os pulsos e arruinará completamente a arte?

Hoje, sem dúvida, vivemos como se fôssemos vulcão ativo e a música atual constitui apenas um momento da psicologia de nossa época que, em qualquer ramo de atividade, se apresenta como desesperada tentativa para encontrar valares novos.

Atualmente, ao invés de próximos, estamos muito afastados da sistematização e da alegria da harmonização; estamos hoje em pleno período de retrocesso nas noites perdidas das orgias da Antigüidade. 

O futuro da música não reside na desarmonia, mas na complexidade e profundeza. Se não voltarmos a percorrer esse caminho, o único aberto à evolução musical, também do ponto de vista musical afundará na barbárie. Esta liberdade exagerada de ritmos significa ruína da ordem, decadência e destruição.

Depois da música erudita não houve melhor música. Não temos, freqüentemente, senão cerebralismo, e lucubração, sem artifício intelectual, sem inspira­ção alguma, paródias, degeneração. Talvez estejamos agora na parte mais baixa da onda, na noite escura que precede a aurora. Assim cremos e esperamos.

Ouvido acostumado às velhas arquite­turas musicais, que, embora mais simples, alcançaram alto grau de equilíbrio, suporta com dificuldade, sem dúvida, essa espasmódica e caótica mudança de fase dos ritmos e o cho­que dessa dolorosa ruína estética. E o espírito, para aderir e aceitar espera que tudo se reordene nos novos equilíbrios.

Beethoven era completamente surdo quando escreveu a Nona Sinfonia composta por quatro movimentos e com duração de setenta e três minutos. Desencarnou com 57 anos (1827) e, com 29 anos começou a ficar surdo. No entanto, a impossibilidade de ouvir não interrompeu a produção genial; parece, mesmo, haver cooperado para sublimá-la, tanto assim que seus trabalhos vão mostrando-se mais inspirados à proporção que a surdez aumenta a partir da metade de sua vida.

Contudo, tinha ele de ouvi-las. Se não, como poderia concebê-las, valorá-las, trabalhá-las? Beethoven as ouvia, embora em simples sensações, com a mesma nitidez e exatidão que a percepção exterior permite. Sua percepção era, pois, diferente mas de igual poder, canalizada por outras vias, as vias interiores.

No plano espiritual superior, você jamais ouvirá samba, rap, hip hop, pagode, axé music, seresta, sertanejo, popular ou qualquer coisa do gênero. No plano espiritual inferior, essas músicas ainda são muito conhecidas e ainda em voga, devido estar ali, homens e mulheres da Terra sem a roupagem física, mas com os mesmos pensamentos e gostos.

 Não interprete como nenhuma crítica ou condenação essas nossas divagações. Cada um de nós está no ponto exato em que reclame a sua evolução e aprendizado. O mundo que você vê na sua frente não é tudo; do seu lado e atrás existem coisas que você não vê, presume que exista e que precisa conhecer. Você é único e não existe outro igual a você. A realidade é a que vemos diante dos olhos e não a que imaginamos.

 

 

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